As exigências do Brasil para conceder vistos aos nômades digitais estão alinhadas com as práticas internacionais?
Ao final de janeiro/2022, o Conselho Nacional de Imigração – CNIG publicou a Resolução CNIG MJSP n. 45/2021, a qual trata da concessão de visto temporário e de autorização de residência para imigrante, sem vínculo empregatício no Brasil, cuja atividade profissional, a serviço de estrangeiros, possa ser realizada de forma remota. Trata-se de uma nova modalidade de visto, permitindo a estrangeiros residir legalmente e usufruir de seus recursos financeiros no Brasil, de modo a fomentar a economia nacional.
O próprio Secretário Nacional de Justiça e Presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), o Sr. José Vicente Santini, ao comentar sobre os benefícios desta modalidade de visto, ressaltou: “a remuneração dos nômades digitais é de origem externa, e os recursos trazidos por esses imigrantes movimentam a economia nacional. Esse é um passo importante para que o Brasil promova um dos modelos mais modernos de trabalho”.
Foram publicadas diversas análises a respeito dessa resolução que, em sua absoluta maioria, se restringiram a: (i) indicar os requisitos necessários para a concessão do visto ou autorização de residência; e (ii) ressaltar o aspecto socioeconômico mencionado acima. Entretanto, uma análise mais aprofundada a respeito de tais requisitos (um deles, em especial), deixa a impressão de que há uma incompatibilidade entre o que a norma exige e a natureza da figura do nômade digital.
Requisitos previstos na resolução n. 45/2021
Em resumo, são dois requisitos gerais a serem cumpridos:
- O(A) imigrante deve comprovar que possui rendimentos recebidos do exterior, em patamares mínimos estabelecidos na resolução, pagos por empregador estrangeiro (exigida também a comprovação de vínculo entre as partes); e
- Deve ser comprovada a possibilidade de execução das atividades laborais de forma remota, ou seja, comprovar que pode trabalhar à distância.
Invertendo a análise: sobre o segundo requisito, não há dúvidas da necessidade de o trabalho ser executável remotamente. Basta uma breve leitura de referências brasileiras de estudo e discussão a respeito desse tema – tais como o site Nômade Digital e as diversas publicações do autor Matheus de Souza, autor do livro “Nômade Digital”, finalista do Prêmio Jabuti – para identificar que as atividades de um(a) nômade digital podem ser executadas de qualquer lugar. Isto está na essência dessa recém-criada categoria de profissional, a qual teve grande crescimento durante a pandemia global de Covid-19. Estima-se, inclusive, que já são mais de 35 milhões de pessoas, podendo chegar a 1 bilhão até 2035.
Em relação ao primeiro requisito, podemos dividi-lo em duas partes: (i) receita mínima e (i) que esta receita seja paga por empregador estrangeiro (exigida também a comprovação de vínculo entre as partes).
Sobre a receita mínima, diante da própria natureza da modalidade de visto (que busca incentivar o fomento à economia nacional, diferente de um visto concedidos por questões humanitárias, como ocorre, por exemplo, com os refugiados), é perfeitamente razoável tal exigência.
O mesmo pode ser dito sobre a obrigatoriedade de a receita vir de país estrangeiro. Isso porque, assim como ocorre com o visto de investidor estrangeiro e o visto de investimento imobiliário, o fato de a transferência de recursos ser originada do exterior (resultando no fomento à economia nacional, com a “importação” de recursos financeiros) é um dos atrativos para o país que recebe o(a) migrante.
Já em relação à exigência de que o(a) migrante esteja obrigatoriamente vinculado(a) a um empregador estrangeiro, salvo melhor juízo, não parece se adequar ao perfil da categoria profissional de nômade digital.
Daniela Maia, presidente da Riotur, que tem um programa específico para nômade digitais, afirmou em publicação do site Panrotas: “o nomadismo digital é uma tendência de comportamento mundial. Veio para ficar. Quem tem o privilégio de escolher a cidade onde viver pelos próximos meses, exercendo sua atividade profissional remotamente se valendo de boa conexão de internet e espaços de trabalhos coletivos, tem a cidade do Rio como opção. O carioca tem um estilo de vida que encanta muita gente, e temos mar, sol, gastronomia, cultura, natureza… A partir de agora, o Brasil se coloca ao lado de países como Alemanha, Geórgia, Noruega, Portugal e Bahamas, entre outros que já criaram esse visto. Estamos muito felizes por isso. E o Rio está de braços abertos.” Mas o Brasil realmente está ao lado desses países?
Conforme descrição do dicionário Michaelis, nômade é um indivíduo que não tem residência fixa. Do ponto de vista laboral, um nômade digital é um indivíduo que pode exercer seu labor de qualquer lugar, mantendo, portanto, a sua condição de nômade, sem que esteja obrigado a efetivamente ter vínculo de emprego.
Como seria possível que toda a e qualquer pessoa considerada como nômade digital consiga combinar um trabalho com movimentação física constante (mudanças de endereço, fuso horário etc.), com vínculo empregatício a um determinado empregador? Esse(a) trabalhador(a) teria horário fixo? A empresa custearia seu plano de saúde? Plano de previdência? Despesas de locomoção? Hospedagem? Internet? Como seria possível a continuidade da relação de trabalho nessa modalidade, considerando que a pessoa poderá estar a cada semana em um país diferente?
Como regra, não seria viável.
Somando isso às referências de literatura mencionadas acima, fica evidente que o vínculo empregatício não pode, de forma obrigatória, estar vinculado à figura do nômade digital. A razão para isso é simples: o que faz de um indivíduo ser um nômade digital é justamente a sua liberdade para trabalhar de qualquer lugar, fazendo o que bem desejar – o vínculo empregatício, em absoluto, não é um elemento relacionado à condição de nômade digital. Na verdade, é justamente o contrário.
Nômades digitais em outros países
Além disso, também cumpre salientar que outros países que permitem a obtenção do visto de nômade digital não pontuam essa exigência dentre os seus requisitos.
A título de exemplo, vejamos os requisitos documentais para o visto D2, em Portugal: (i) atividade profissional independente; (ii) imigrantes empreendedores; e (iii) Start Up Visa (essa última teria como correlação no Brasil o visto de investimento de pessoa física, previsto na RN 13/2017). Em nenhuma delas a exigência de vínculo empregatício com o pagador estrangeiro está presente.
Do mesmo modo, na página com as informações a respeito do processo de obtenção do visto de nômade digital da Estônia, ao apresentar os requisitos para aplicação ao visto, consta a seguinte informação (em tradução livre): “você pode ou ter um contrato com vínculo empregatício ativo, com uma empresa registrada fora da Estônia, conduzir negócios por meio da sua própria empresa registrada no estrangeiro ou trabalhar como um freelancer para clientes em sua maioria fora da Estônia.” Não há, portanto, obrigação de que exista vínculo empregatício com um empregador estrangeiro para realizar a aplicação ao visto. Situação esta muito semelhante com os requisitos da Grécia para a concessão do visto de nômade digital.
Na mesma linha, não há obrigatoriedade de vínculo empregatício para os vistos concedidos pelo Governo da Alemanha, sejam os vistos de trabalhadores independentes ou de empreendedores (“atividade independente – criar uma empresa”). O mesmo a respeito do visto para trabalhadores remotos e seus familiares na Islândia.
Por fim, um dos países mais restritivos em relação ao visto de nômade digital, os Emirados Árabes Unidos (onde a comprovação de receita mensal mínima é de cinco mil dólares), incluem o vínculo empregatício como um requisito obrigatório para candidatos(as) que sejam empregados(as). Porém, permite também que microempreendedores apliquem para o visto de nômade digital (sendo necessário apenas comprovar a titularidade da empresa e a receita mensal mínima).
Conclusão
Todos os deferimentos (concessões) de vistos e autorizações de residência feitos pelo governo brasileiro são publicados no Diário Oficial da União. Do final de janeiro/2022 até o dia 28/06/2022, ou seja, em aproximadamente cinco meses, ocorreram apenas 21 (vinte e um) deferimentos com base na Resolução CNIG MJSP n. 45/2021. Vinte e uma pessoas, num universo de 35 milhões, como vimos acima, o que corresponde a 0,0000006% dos nômades digitais. Será que o Brasil (país que abriga aproximadamente 3% da população mundial nos dias atuais) é tão pouco atrativo aos nômades digitais estrangeiros, ou talvez essa exigência a respeito do vínculo com empregador estrangeiro esteja, de certo modo, inibindo a vinda de parte dessas pessoas?
Limitar a concessão do visto e/ou autorização de residência do nômade digital àqueles que efetivamente possuem vínculo empregatício com empregadores estrangeiros, com o devido respeito, é uma situação teratológica, uma anormalidade, seja do ponto de vista conceitual como também pelo seu total desalinhamento com as práticas adotadas em todos os países listados acima.
Em verdade, se nos limitarmos aos requisitos do atual escopo previsto na Resolução CNIG MJSP n. 45/2021, o visto em questão não deveria se chamar “visto dos nômades digitais”, mas sim, “visto para empregados com vínculo que trabalham de forma remota”.
Pelas razões expostas acima, entendemos que deve ser afastada a obrigatoriedade de que o(a) estrangeiro(a) tenha necessariamente vínculo com empregador estrangeiro para a obtenção de visto ou autorização de residência na modalidade de nômade digital – posição esta em alinhamento no Direito Comparado no que diz respeito aos requisitos para concessão de vistos de modalidade semelhante em outros países.